A importância moral do sofrimento


Peter Singer | Universidade de Princeton

Se um ser sofre, não pode haver justificação moral para a recusa de tomar esse sofrimento em consideração. Independentemente da natureza do ser, o princípio da igualdade exige que o sofrimento seja levado em linha de conta em termos igualitários relativamente a um sofrimento semelhante de qualquer outro ser, tanto quanto é possível fazer comparações aproximadas. Se um determinado ser não é capaz de sofrer nem de sentir satisfação nem felicidade, não há nada a tomar em consideração. É por isso que o limite da senciência (para usar o termo como uma abreviatura conveniente, ainda que não estritamente precisa, da capacidade de sofrer ou de sentir prazer ou felicidade) é a única fronteira defensável da preocupação pelo interesse alheio. Marcar esta fronteira com alguma característica como a inteligência ou a racionalidade seria marcá-la de modo arbitrário. Por que motivo não escolher uma outra característica qualquer, como, por exemplo, a cor da pele?

Os racistas violam o princípio da igualdade atribuindo maior peso aos interesses de membros da sua própria raça quando há um confronto entre os seus interesses e os de outra raça. Os racistas de ascendência europeia não aceitavam geralmente que a dor conta tanto quando é sentida pelos africanos, por exemplo, como quando é sentida pelos europeus. Do mesmo modo, aqueles a quem chamo «especistas» atribuem maior peso aos interesses dos membros da sua própria espécie quando há um conflito entre esses interesses e os das outras espécies. Os especistas humanos não aceitam que a dor sentida por porcos ou ratos seja tão má como a dor sentida por seres humanos.

Na realidade, este é, pois, o argumento completo para alargar o princípio da igualdade aos animais não humanos; mas surgem algumas dúvidas sobre o que esta igualdade implica na prática. Em particular, a última frase do parágrafo anterior pode levar algumas pessoas a responder: «É claro que a dor sentida por um rato não é tão má como a dor sentida por um ser humano. Os seres humanos têm maior consciência do que lhes está a acontecer e este facto torna o seu sofrimento mais intenso. Não se pode comparar a dor de uma pessoa, digamos, que morre de cancro numa agonia prolongada, com a de um rato de laboratório que sofre o mesmo destino».

Aceito perfeitamente que no caso descrito a vítima humana de cancro sofre mais que a vítima não humana. Este facto não põe em causa a igualdade na consideração de interesses dos não humanos. Significa antes que temos de ter cuidado quando comparamos os interesses de diferentes espécies. Em algumas situações, um membro de uma espécie sofrerá mais do que o de outra. Neste caso devemos continuar a aplicar o princípio da igualdade na consideração de interesses, mas o resultado dessa atitude consiste, é claro, em dar prioridade ao alívio do maior sofrimento. Um exemplo mais simples pode ajudar a esclarecer esta questão.

Se eu der uma forte palmada na garupa de um cavalo com a mão aberta, o cavalo pode sobressaltar-se, mas é de presumir que sinta pouca dor. A sua pele é suficientemente espessa para o proteger de uma simples palmada. Porém, se eu der a mesma palmada a um bebé, este chorará e é de presumir que sinta dor, porque a sua pele é mais sensível. Logo, é pior dar uma palmada a uma criança do que a um cavalo, se ambas forem administradas com igual força. Mas tem de haver algum tipo de golpe — não sei o que poderá ser, mas talvez uma pancada com um pau pesado — que cause ao cavalo tanta dor como a que provocamos a uma criança com uma simples palmada. É isto que pretendo dizer com «mesma quantidade de dor». E se considerarmos um mal infligir uma dada quantidade de dor a um bebé sem motivo, temos de considerar igualmente um mal infligir a mesma quantidade de dor a um cavalo sem motivo — a não ser que sejamos especistas.

Entre os seres humanos e os animais há outras diferenças que causam outras complicações. Os seres humanos adultos normais possuem capacidades mentais que os levarão, em certas circunstâncias, a sofrer mais do que os animais nas mesmas circunstâncias. Se, por exemplo, decidirmos efectuar experiências científicas extremamente dolorosas ou letais em adultos humanos normais, raptados para o efeito ao acaso em parques públicos, os adultos que entrem nos parques terão medo de serem raptados. O terror resultante representará uma forma de sofrimento adicional à dor provocada pelas experiências. As mesmas experiências executadas em animais não humanos provocariam menor sofrimento uma vez que os animais não antecipariam o pavor de serem raptados e vítimas de experiências. É claro que isto não significa que seria um bem realizar essas experiências em animais, mas apenas que existe uma razão não especista para preferir usar animais em vez de adultos humanos normais, se é que essa experiência se deva alguma vez fazer. Note-se, contudo, que este mesmo argumento nos dá razões para preferir utilizar bebés humanos — talvez órfãos — ou seres humanos com deficiências intelectuais profundas em vez de adultos, uma vez que os bebés e os seres humanos com deficiências intelectuais profundas não fariam nenhuma ideia do que lhes iria acontecer. No que diz respeito a este argumento, os animais não humanos, os bebés e os deficientes mentais profundos estão na mesma categoria; e se usarmos este argumento para justificar experiências em animais não humanos, temos de perguntar a nós próprios se também estamos preparados para permitir experiências em bebés humanos e deficientes mentais profundos. Se fizermos uma distinção entre os animais e estes seres humanos, como poderemos fazê-lo senão com base numa preferência moralmente indefensável em favor dos membros da nossa espécie?

Há muitas áreas em que as capacidades mentais superiores dos seres humanos adultos normais fazem diferença: antecipação, memória mais pormenorizada, maior conhecimento do que está a acontecer, etc. Estas diferenças explicam por que motivo um ser humano a morrer de cancro sofre provavelmente mais do que um rato. É a angústia mental que torna a posição do ser humano muito mais difícil de suportar. No entanto, estas diferenças não apontam todas para um sofrimento maior por parte de um ser humano. Por vezes os animais podem sofrer mais devido à sua compreensão limitada. Se, por exemplo, estivermos a fazer prisioneiros em tempo de guerra, podemos explicar-lhes que embora se tenham de sujeitar à captura, ao interrogatório e à reclusão, não sofrerão outros agravos e serão postos em liberdade uma vez terminadas as hostilidades. No entanto, se capturarmos animais selvagens, não lhes podemos explicar que não ameaçamos as suas vidas. Um animal selvagem não pode distinguir uma tentativa de subjugar e prender de uma tentativa de matar; tanto uma como outra provocam o mesmo terror.

Pode objectar-se que é impossível comparar o sofrimento de diferentes espécies e que, por esta razão, quando os interesses de animais e de seres humanos entram em conflito, o princípio da igualdade não serve de orientação. É verdade que a comparação do sofrimento entre membros de diferentes espécies não se pode fazer com precisão. Nem se pode comparar com precisão, pelos mesmos motivos, o sofrimento de seres humanos diferentes. A precisão não é essencial. Como veremos em breve, mesmo que quiséssemos evitar infligir sofrimento aos animais apenas quando os interesses dos seres humanos não fossem afectados, seríamos forçados a efectuar mudanças radicais na forma como tratamos os animais, o que teria implicações relativamente à nossa alimentação, aos métodos de criação de animais, aos processos experimentais em muitas áreas da ciência, à nossa atitude perante a vida selvagem e a caça, as armadilhas e o uso de peles e relativamente a certas áreas do entretenimento como circos, touradas e jardins zoológicos. Em consequência disso, a quantidade total de sofrimento causado seria grandemente reduzida; seria tão reduzida que é difícil imaginar outra mudança de atitude moral que causasse uma redução tão grande da soma total de sofrimento no universo.

Peter Singer
Tradução de Álvaro Augusto Fernandes
Texto retirado de Ética Prática, de Peter Singer (Lisboa: Gradiva, 2000).
http://criticanarede.com/fa_9excerto2.html

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